A correria nos tira a capacidade de ouvir com sentimento, de perceber o quanto a Rua Dois de Dezembro fala cantado. As palavras ditas por inteiro, a sentença ritmada e terminada sempre numa nota seca. Musicada. Uma “melocidade” só permitida aos nortistas e nordestinos.
A Rua Dois de Dezembro é morada por filhos do Norte-Nordeste. Migrados. Portarias, esquinas, calçadas e barracas do andar térreo. Uma encantadora selva semi-árida enraizada no coração do Flamengo. Espalhada no asfalto do bairro, quente ao ponto de acender um cigarro. Queimado lentamente. Enfumaçando de cinza a barba, os sulcos do rosto e o olhar risonho do vendedor de livros da esquina com a Catete.
Seu Sílvio trouxe sua melocidade – ainda moço – do Recife, de onde desapareceu para quase nunca mais mandar notícia. Ajeitou-se com uma barraca de frutas lá pela Glória. De um senhor cansado, herdou o ponto de livros usados. Foi vender letras por outras calçadas. E a partir delas, ajudou a dar sobrevivência a outros moços e moças migrados, que até hoje, o chamam de pai.
Nesse tempo, de tanto tempo, ficou velho. Aguentou o sofrer da distância de sua terra e de sua história devorando as páginas de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Mas quando a saudade lhe arrombou o peito, foi até uma agência telefônica pela primeira vez depois de 20 anos. Ligou para o Recife. Disse “alô” para sua mainha, numa voz cheia de melocidade, avisando que estava vivo.
Dona Naly, de alívio, veio a morrer. Já seu filho, o vendedor de livros, segue a rir cinza na Dois de Dezembro. A gente, de cá, enxergando letras em sua fumaça, nos permitimos a espera por alguém para escrever a memória de Seu Sílvio. História para ser lida em voz alta, cantada, cheia dessa tal melocidade.